Newsletter | Gestos #2
Uma boa cozinheira
Uma coisa que me salta aos olhos quando vejo alguém cozinhando é o movimento das mãos de quem está na lida.
O gesto na cozinha é tudo. É intenção. Ali se sabe se a comida é só pro corpo ou pra alma também. Fazer de qualquer jeito ou fazer com amor. A segunda é sempre a melhor opção, pra tudo na vida. E na cozinha, não tem como mentir. O gesto entrega tudo.
É ainda tempo, experiência, sabedoria... as mammas italianas que o digam. Quanto mais veias nas mãos delas, mais lindo é o balé da feitura de uma massa caseira, com seus inúmeros formatos. Aperta daqui, estica de lá... Não precisavam nem sonorizar esses Reels. É emocionante porque é.
Os anos se passaram e só recentemente fui perceber os gestos da minha mãe. A mão dela está cada dia mais linda, mais sábia. O jeito que ela mexe o arroz, que ela enrola o rocambole de carne, que ela corta um lombinho, que ela arruma uma travessa de salada.... A intenção dela está toda lá, mesmo nos dias mais cansados. Nunca é de qualquer jeito. É sempre com amor. Acho que ela nem percebe.
Já eu, mais que percebo, valorizo. E me atento cada vez mais aos meus próprios gestos. Quero cozinhar como ela. Quando comecei a ensaiar umas receitas, tinha a mão pesada, impaciente, bruta. Um prato salgado demais aqui, outro feioso à beça ali... Não entendia o que acontecia. Fui suavizando aos poucos, prestando mais atenção nas minhas mãos, sem me dar conta que estava amadurecendo meus movimentos mas também minha intenção, minha entrega, meu amor.
Apurar o gesto é tão importante quanto entender o que é uma pitada de sal. Leva tempo e a viagem pode ser longa. Mas a prática é uma estrada bem divertida pra seguir. Eu sigo e quando minha mão estiver cheia de veia, toda enrugadinha, acho que eu serei uma boa cozinheira.
5 perguntas para... Telma Shiraishi
Não dá para falar de gestos sem entrar na cozinha japonesa, da qual eu sou muito fã. Não só pelos sabores mas pelos saberes. Eu convidei a chef Telma Shiraishi para responder 5 perguntas sobre o tema dessa newsletter.
Telma tem prêmios e títulos como o de Chef do Ano e ainda honrarias como a concedida recentemente pelo Governo Japonês de Embaixadora da Boa Vontade para Difusão da Culinária Japonesa – sendo a primeira mulher brasileira a receber esse título. Independente disso, ela sempre me emociona com sua comida no Aizomê, restaurante que ela comanda em São Paulo. E não foi diferente com as respostas que ela gentilmente deu para essa seção.
1- Do uso do hashi ao preparo dos sushis, o movimentos das mãos é protagonista na cultura japonesa. Os gestos fazem parte da técnica culinária ou é mais do que isso? E qual é o gesto mais importante pra você na cozinha?
TS: Creio que o gestual e os maneirismos são próprios de cada cultura e de cada ofício. Mas para os japoneses, sempre tão conscientes de cada pequeno gesto e que zelam pelo preciosismo nos mínimos detalhes, talvez a sutileza e a parcimônia, com gestos contidos, para se obter o máximo com o mínimo, sejam uma marca própria. E um gesto primordial, que é mais uma postura, é o de respeito sempre. Respeito com todos e respeito com tudo, respeito ao ingrediente e respeito por quem trabalha duro para que o alimento chegue até nós.
2- Antes de ser chef você estudou medicina, publicidade, moda. Mas se encontrou na cozinha ao se conectar com as suas raízes. Qual é a sua grande memória de casa, em torno de uma mesa?
TS: Sempre tínhamos mesas enormes nos finais de semana, com a família toda reunida na casa dos avós, alternando entre as casas dos avós maternos e paternos. Mesas com 20, 30 pessoas sentadas juntas, partilhando a comida, histórias e risadas. E a grande memória são as combinações típicas de famílias imigrantes, reunindo no mesmo prato sushi com churrasco ou sashimi com feijoada. Em nosso dia-a-dia tinha o arroz com feijão, só que o arroz era o cozido à moda japonesa. E se me perguntassem qual o último prato que comeria em vida seria isso: gohan (arroz japonês) com o feijão bem temperadinho de minha mãe.
3- Qual é o “cebola e alho” da cozinha japonesa? Aquele tempero que leva a gente pra casa?
TS: Gengibre e cebolinha se formos pensar nessa linha de “alho e cebola”. Ou os temperos fermentados japoneses que dão a dimensão extra a qualquer preparação – shoyu e missô.
4- O japonês faz do ato de comer e de cozinhar, uma cerimônia. As comidas são bem apresentadas, há gestos na hora de servir, os ingredientes são importantes. O que o brasileiro ainda não entendeu sobre esse ritual?
TS: Os japoneses têm o hábito que é ensinado desde criança de agradecer no início e no final da refeição. A gratidão é talvez o que mais falta em nosso dia-a-dia. Gratidão pelo alimento, gratidão por quem cozinhou, para quem proveu a comida, quem cultivou ou forneceu os ingredientes, gratidão à natureza, aos nossos antepassados e, no final – gratidão à vida!
5- Na pandemia, você idealizou e hoje lidera o projeto “Água no Feijão”, que já distribuiu mais de 100 mil marmitas a pessoas que lutam diariamente contra a fome no Brasil. A doação é também um gesto. Quais são os ingredientes que te motivam a continuar esse movimento tão necessário?
TS: O ingrediente inicial com certeza foi a solidariedade. E na verdade me senti extremamente privilegiada por estar com saúde, trabalhando, com um teto e comida na mesa. Ajudou muito a mim e a todos os voluntários que se engajaram comigo a atravessar os tempos difíceis, pois tiramos o foco de nossas próprias mazelas e nos sentimos afortunados por podermos fazer algo, por encontrar um propósito no meio de tanta incerteza e desafios. A partir do momento que saímos de nossa bolha percebemos quão grande é o problema e não é mais possível ignorar ou deixar de procurar fazer mais. Conheci muitas pessoas e muitas histórias de superação, de abnegação, de doação e de trabalho árduo para ajudar os outros. A fome é cruel e foi muito doloroso testemunhar mães que não tinham como alimentar seus filhos. Eu trabalho na cozinha, alimentando pessoas. E minha profissão então ganhou uma dimensão muito maior. Posso cozinhar pratos sofisticados para clientes exigentes, mas fornecer um prato de comida que vai ajudar alguém com fome parece fazer muito mais sentido para mim como cozinheira após essas lições de vida.
Para conhecer e ajudar o movimento “Água no Feijão”, clique aqui.
Extra! Extra! Talharim caseiro
Minha vó Lúcia fazia massa caseira. Ela se foi quando eu tinha 11 anos, mas muitas imagens dela na cozinha ficaram gravadas na minha memória.
Vó Lúcia não era nada fofa. Pudera, tinha 13 filhos! Na minha cabeça, ela fazia tortéi de abóbora numa mesa enoooorme. Numa cozinha compriiiiida. Recentemente voltei à casa do sítio onde ela morava, onde eu passava as férias, e foi um baque. Criança vê tudo superdimensionado mesmo.
Lembro mais dos bastidores do que do sabor da comida da minha vó. O cortador de massa bem velho, as mãos fechando o tortéi um a um, o tal do gesto, o cheiro de farinha no ar. Ah, não, espera. Lembro demais do gosto da massa crua. Eu amava.
No último feriado pude estar com a família e resolvemos fazer massa fresca. Minha mãe arrepia um pouco quando falo de fazer, meu pai tem vontade de comprar um frango assado porque sabe que o almoço vai sair tarde. Mas todo mundo entra na onda e acaba sendo sempre uma ação coletiva. Dessa vez, meu sobrinho de 6 anos mexeu na massa, esticou como pôde tentando fazer como eu, atento aos movimentos. E quando provou o macarrão cru, saiu gritando “hum, é muito bom! É muito bom!”. Eu sei, Henrique.
***
Aqui divido com vocês como eu fiz. Os experts que me perdoem, já vou falando.
#foiassim da massa
- A receita da massa fresca é, em geral: pra cada 100 gramas de farinha de trigo, 1 ovo. Eu fiz 800 gramas de farinha e 8 ovos. Se calcularmos que cada ovo tem em média 50 gramas, fiz cerca de 1,2 kg de massa. A minha galera era grande mas eu sugiro que você faça menos, pra começar.
- No sítio temos o abridor de massa manual, que também corta o talharim. Facilita um pouco. Mas fazendo em menor quantidade e sem preocupação de ser perfeito, arrisco dizer que é até mais prático cortar na mão, como fazem as mammas italianas. Minha tia fazia o macarrão da sopa de Natal assim. Amo as tirinhas imperfeitas. Já fiz em casa e vale a pena. No perfil que eu mais amo do Instagram, @pastagrannies, elas fazem muito isso. Veja esse vídeo e se apaixone com os gestos dessa cozinheira. Ela faz tudo parecer tão simples...
- Para juntar os ovos e a farinha, veja o link do “Lopping do momento”, logo abaixo nessa newsletter.
- Quando a massa estiver bem lisinha, faça uma bola, envolva em plástico filme para não criar película na massa e deixe descansar pelo menos 30 minutos na geladeira. Depois, é só abrir numa superfície enfarinhada, como você quiser, mas sempre com a ajuda de um rolo de macarrão primeiro.
- E não abra a massa inteira, divida em partes cortando com uma faca.
- Em casa não temos o varal pra deixar a massa secar sem grudar. Então vai na técnica da vó mesmo, jogando fubá na massa depois de cortada e sempre colocando um paninho por cima. Funciona, desde que você cozinhe a massa no mesmo dia.
#foiassim do molho
- Fiz um ragu de carnes, que é um molho cozido por algumas horas. Usei um pouco de linguiça fresca sem pele, um pedaço que sobrou de um filé mignon e que eu cortei na ponta da faca, um lombinho de porco que já estava assado e sobrou na geladeira que eu desfiei. Tudo agrega sabor.
- Comecei selando a carne moída e a linguiça. Reservei.
- Na mesma panela, com esse fundo precioso cheio de sabor, coloquei cebola picadinha e azeite. Um tiquinho de sal e deixei murchar.
- Em seguida, coloquei alho picado e cenoura ralada. Mexi bem, deixei refogar um pouco. Pinguei uma água quente só pra ajudar a soltar bem o fundo da panela e coloquei extrato de tomate. Deixei refogar um pouco.
- Entrei com a carne moída, a linguiça e também o lombinho desfiado, mexi bem.
- Quando tudo estava bem juntinho, coloquei um molho de tomate vapt-vupt, pouco apurado, que minha mãe já tinha feito no dia anterior. Você pode usar tomate pelado aqui ou passata. Nesse caso coloque um pouco de água também.
- Mexi bem, ajustei sal e pimenta do reino, abaixei o fogo e tampei a panela. De vez em quando, ia lá olhar, mexer, provar... até apurar bem.
- Você vai ver que está pronto quando não tiver mais água borbulhando e sim apenas o molho, mais denso, mais encorpado. Vai sentir pelo cheiro também. No meu caso, que era um panelão, levou umas duas horas.
- No final, gosto de desligar o fogo, colocar bastante manjericão fresco e tampar.
Looping do momento
Eu estou encantada com Fiona Afshar. Uma cozinheira amadora que começou a postar suas massas coloridas no instagram e bombou. As massas são tão artísticas que eu até esqueço que são de comer. Numa entrevista que li a seu respeito, ela fala que apresentar um prato bonito muda a conversa na mesa de jantar. É um gesto, fala a verdade? Fiona também não gosta de cozinhar com receitas, outra coisa que amei sobre ela. E pra se inspirar sobre as cores e sabores de suas próximas criações, ela vai ao mercado perto de casa e observa as ervas e vegetais da estação. Todo mundo pode fazer isso!
Os vídeos dela são hipnóticos mas esse que eu quis destacar hoje me chamou a atenção pelos movimentos que ela faz ao preparar a massa básica.
Para assistir, clique aqui.
Foi assim...
Cheguei até aqui e me dei conta que essa newsletter homenageou as mulheres. E, pra terminar o nosso papo, aqui vai mais uma. Regina é a dona do restaurante mais gostoso da empresa que eu trabalho. Ela viu na cozinha uma virada de vida. Ela sabe o poder da comida na saúde das pessoas e se preocupa com cada prato que faz, monta com cuidado pra ficar bonito, ainda que ele seja esquentado no microondas depois. Um prato bem arrumado faz diferença.
Um dia, a Roberta Sudbrack estava almoçando comigo lá e antes de provar a comida me disse: “olha os gestos dela, como ela pega na colher, como ela ajeita as travessas... é cozinheira boa!”.
É da Regina essa receita que está no meu instagram e que eu amo tanto: arroz com berinjela e banana. Delícia demais.