Newsletter | Carta de amor #12
Formas de amar; 5 perguntas para a chef Andrea Kaufmann; duas receitas de caldo ao pé do ouvido; o pastel de queijo da Dona Cristina; um bife mágico; a declaração de amor da Marcella Hazan.
Um dia, pedi para um cara com quem eu estava me relacionando havia pouco tempo que ele fizesse uma playlist pra mim. Não me lembro a ocasião, mas eu curtia o gosto musical dele. Ele deu um passo pra trás. Disse que isso era o equivalente a fazer uma fita K7 para alguém, um quase pedido de casamento, uma declaração de amor. E era muito cedo pra tudo isso. Eu, na minha ingenuidade, estava apenas pedindo uma playlist. Já ele - que encontrava na música as palavras que ele não conseguia dizer - achou o passo ousado demais.
A gente tem muitas maneiras de amar mesmo. Outras tantas de demonstrar que ama. É como dizem: cada um com seu cada um. Cada qual com seu cada qual. Falar “eu te amo” é o de menos, às vezes. Agir na intenção do amor é que é lindo, eu acho. E a mágica se dá entre o agir daqui e o perceber de lá, sem a gente ter que explicar muito.
Eu acho que existem maneiras diversas e ainda desconhecidas em mim de mostrar quando eu amo. Pronunciar o “eu”, seguido do “te”, arrematando com “amo” é das mais difíceis, embora confesse que até já foi mais. Cozinhar é, sem dúvida, a minha forma mais fácil, a comida diz o que às vezes não sai da minha boca. Eu vou escolher os melhores ingredientes, não importa o preço. Eu vou dedicar meu tempo na organização, não importa o compromisso. Eu deixarei algo para depois. Eu faço até risoto se a pessoa pedir. Se eu amo alguém, eu com certeza vou querer cozinhar pra esse amor. Quero que ele perceba que eu fritei o arroz no refogado de cebola e alho sem pressa antes de colocar a água pra cozinhar. Que na fatia bem montadinha daquela lasanha, que esperou o tempo certo entre sair do forno e cortar pra não desmoronar, ele sinta um beijo apaixonado. Desejo que o sorriso dele se abra quando o molho de tomate do qual me orgulho tanto fizer parte da sua vida numa quinta-feira qualquer. Que mesmo na minha panquequinha fit de banana com farinha de amêndoas e cacau ele veja graça. Que ele perceba o quanto de amor carrego nas palavras quando eu perguntar “o que você quer comer hoje?”.
A cozinha é pra mim um lugar onde eu definitivamente exercito o amor, aquele também incondicional. Dela sai um bolo para os meus sobrinhos quando eles dormem na minha casa. Sai um refogado de verdura pro meu pai quando ele janta comigo. Sai uma pescada amarela ensopada com fregola pra minha mãe que ama peixe.
Não que todo mundo precise ir pra cozinha com esse sentimento. Você pode apenas entrar na sua cozinha, fazer a sua comida pra resolver um problema e tchau. Apaga a luz e “estou fechando a cantina”, como diz a minha mãe. Mas periga um dia você fazer uma lasanha pros seus filhos e ouvir que é a melhor lasanha que eles já comeram na vida, como aconteceu com a minha cunhada. Ou que até o seu suco de laranja é bom, como ouvi de um ex-namorado. Ou ainda tratar as alergias de uma criança buscando nas memórias de cozinha da sua avó a cura, como me contou uma mãe certa vez. Daí, minha gente… aí o bicho pega. Aí o amor te invade. E é aí que mais uma nova forma de amar passa a fazer parte de você. Fico aqui, torcendo por isso.
5 perguntas para…. Andrea Kaufmann
Minha primeira experiência numa mesa judaica foi a convite da chef Andrea Kaufmann. Era um jantar de Rosh Hashaná, o ano novo judaico, que aliás começa no próximo dia 2. Eu mal podia esconder a minha alegria e encantamento de estar sentada à mesa com aquela família, numa situação tão íntima e que, claro, é repleta de comida. Tinha recém chegado em SP e o convite veio em forma de acolhimento. Chegando na casa dos pais da Andréa, fui recebida como da família. E a noite seguiu daquele jeito que eu adoro: todos rodeados à mesa, comida que vem e que vai, “come mais um pouquinho”, “guarda espaço porque tem muito mais”, vinho, papo e risadas. Nunca jamais esquecerei. Para além dos sabores marcantes da comida feita pela Anita, mãe da Andrea, e que eu gravei na memória, os rituais feitos com a comida para que o ano seja doce e bom pra todos me encantaram e me fizeram, mais uma vez, ter a certeza de que sim, comida agrega, conecta e diz quem somos. Para essa newsletter onde o amor é tema, convidei a Déia, como hoje eu tenho o privilégio de chamar a chef AndreaK Kaufmann, pra responder as perguntas dessa coluna. Vocês vão entender o motivo.
1- A comida na religião judaica é muito importante e cheia de significados. Inclusive de amor. Como você se encaixa nessa ideia da mãe judia?
AK: Primeiro, o que é comida judaica? A comida judaica é uma comida que conta a história do nosso povo, as nossas andanças por aí. Desde a comida do Oriente Médio, chamada de sefaradi - mais representada pelos azeites, o grão-de-bico, o tahine, os grãos, as tâmaras e as ervas - quanto a comida ashkenazi, que é a da Europa, que tem muita batata, cebola caramelizada, mais batata e um pouco mais de batata (risos). É uma comida que vem de uma necessidade de preservação então a gente tem muitos picles, muitas carnes e peixes curados, com ingredientes muito simples e uma comida que vem da pobreza. A comida judaica traduz esses 5 mil anos de muita perseguição mas através da comida a gente conta a nossa história, a gente faz as nossas festas, demonstra o nosso amor. Então, sim, a comida judaica é marcada de muito amor. E se eu sou uma idishe-mame, uma mãe judia? Sim, eu sou aquela mãe que fica assim “come, minha filha, come um pouco mais, tá doente eu vou fazer um caldinho” (risos). Eu sou bem bem bem mãe judia, que através da comida dá muito amor.
2- Você já teve restaurante em SP, fechou querendo uma vida mais tranquila mas não aguentou, abriu a AK Deli (que eu considero uma extensão da minha casa) e colocou lá mesinhas e vive lotado de gente, servindo café da manhã, almoço, brunch... Ou seja, também é um restaurante. Cozinhar, servir e ver o outro comendo o que você preparou é um amor incontrolável?
AK: Eu sempre tive paixão de ver as pessoas comendo a comida que eu fazia. Me dá muito prazer. É uma forma de contar história, de passar um legado, de mostrar o amor. Eu gosto muito de ver as pessoas se relacionando na mesa, em como ali acontecem as relações de trabalho, as relações familiares, as relações amorosas, de amizade. É um vício meu ter as mesas no salão, não vou negar. Eu quero presenciar o que a comida é capaz de fazer. Mas o AK é uma delicatessen, focada em delivery, e também tem essa ideia de que as pessoas em suas casas confraternizem através da comida.
3- Qual é a comida que você faz pra dizer “eu te amo”?
AK: Aqui em casa, sem dúvida, essa comida é o caldo, especialmente o caldo com kneidlach. É uma sopa feita a base de carne e frango, de cozimento longo, de muitas horas e muito saudável, com uma bola feita de farinha de matzá, como uma almôndega. Eu ouço as pessoas falando que onde tem um bolo tem um lar, pra mim é onde tem um caldo tem um lar. Chegar em casa e ter um caldo acontecendo ou a minha família chegar em casa e eu ter feito um caldo, é realmente a maior demonstração de amor que eu posso dar. Como mãe, me representa. E claro que dentro do AK a gente tem esse prato também, que é para os clientes terem essa sensação de terem chegado na casa de alguém que quer muito que eles estejam lá.
4- Quais ingredientes você guarda no coração e como os usa na cozinha?
AK: Se eu tiver que falar um ingrediente que eu guardo no coração seria o legado, a história, o que me fez chegar até aqui. Então, eu aprendi a cozinhar com as minhas avós, com a minha sogra, com a minha mãe, com tantos cozinheiros maravilhosos que eu encontrei pelo caminho, tantas cozinhas que eu visitei, eu comigo mesma... Os anos em que morei em Portugal, durante a pandemia, foi uma imersão na Andrea cozinheira e eu reaprendi a cozinhar sozinha. Tudo isso me fez ser quem eu sou. Então, o legado é o meu ingrediente principal.
5- O que é pra você cozinhar com amor?
AK: Existe uma palavra que eu gosto muito que é Kavanah, que significa intenção. Pra mim, cozinhar com amor é cozinhar com intenção. É uma cozinha onde você tem a clara intenção de demonstrar afeto, carinho, respeito, de querer passar nutrição praquela pessoa para quem você está cozinhando. E isso se traduz muito no salão do meu restaurante, na cozinha do meu restaurante e na minha cozinha do dia a dia. Eu realmente foco em cozinhar com intenção.
*** O restaurante e delicatessen da Andrea é a AK Deli e fica na rua dos Macunis, 440 em Pinheiros. Funciona de terça a domingo e também tem entrega pelo Ifood.
O caldo da chef, amor purinho
Quando eu ouço algum chef de cozinha falar em caldo, já me arrepio. Eu que sou da cozinha sem perfeição, me atento aos caldos das cozinhas profissionais e penso mil vezes antes de fazer. Pensando que isso pode acontecer com você aí que está lendo, pedi pra Andrea Kaufmann dar pra gente a receita do seu caldo. Ela não só deu a sua receita como também a da sogra dela.
E como ouvir a Déia é sempre uma delícia, aproveitei para, em vez de dar a receita em texto, dividir com você o áudio dela me contando como faz. Na pandemia, a Déia tinha um grupo de pessoas no whatsapp para quem ela sempre mandava a “Receita ao pé do ouvido”, que nada mais era do que isso aí. Achei auspicioso relembrar.
Glossário das palavrinhas que estão no áudio da chef e que podem ser desconhecidas pra muita gente:
Simmer: cozinhar lentamente em fogo baixo.
Umami: é o quinto sabor, aquele que prolonga o gosto e que aumenta a nossa salivação.
Caçarola: uma panela mais funda, de laterais retas e alças.
Deglaçar: tirar todas os grudinhos do fundo da panela para agregar esse sabor ao preparo.
Reação de Maillard: é mais do que caramelizar o alimento, é uma reação química entre os aminoácidos e os açúcares reduzidos do alimento, que dão ao preparo a cor dourada e um sabor característico. Acontece em crostas de pão e na carne assada, por exemplo.
Pastel de queijo com amor
Esses dias estive em São José do Rio Pardo gravando uma matéria especial para a TV Globo sobre a cultura caipira com o chef Jefferson Rueda. Ele me levou para conhecer um bar na rodoviária da cidade que existe há 50 anos fazendo a mesma coisa: um café coado à risca pelo seu Ivo e um pastel à moda antiga feito pela dona Cristina. Eu provei o pastel de carne porque o de queijo ela só faz aos finais de semana e feriados. Quer saber o porquê? Clique no vídeo e assista. É uma declaração de amor ao que ela acredita, ao que ela faz, a todos os seus clientes.
Dona Cristina, muito obrigada pelo ensinamento! Quem for para Rio Pardo, não deixe de ir no Café Lupianhaes.
O Bife perfeito da Luisa
Falando em reação de Maillard, achei uma boa oportunidade para compartilhar aqui o modo de fazer bife da Luisa Zuffo, que faz receitas deliciosas e práticas no seu perfil Acostuma no Instagram, que ela faz em parceria com a Paula Valansi, que é nutricionista. A Luisa grelha a carne e não faz NENHUMA sujeira no fogão. Eu testei. É Magico. O bife ficou incrível e o meu fogão intacto! Isso é vida, é amor. Como ela tem um vídeo explicando muitoooo bem, compartilho aqui o link pra você ir direto lá ver.
Clique aqui para ver como fazer o bife em casa sem sujar o fogão.
Por falar em amor… e um conselho
Outro dia eu encontrei uma amiga querida, super escritora com dois livros publicados, Paula Gicovate. Paula fala de amor como poucas pessoas falam. Se abre mesmo, se expõe, fala aquelas coisas que a gente não consegue dizer, só pensar. Trabalhamos juntas como roteiristas e quando nos conhecemos ela não cozinhava. Nadinha. Quando começou a fazer a sua newsletter, que aliás é deliciosa como ela, ela contou na primeira edição que um conselho meu a faz ir para a cozinha e tentar. “Começa perdendo o medo da cozinha fazendo a sua comida preferida”, eu disse. E ela foi. Veio a pandemia e ela já estava lá, cozinhando. Percebeu que amava os doces, a confeitaria. Até curso de bolos fez! Virou fã de Nina Horta. E eis que seu terceiro romance já está no forno (ops) e a cozinha é cenário. Quando ela me contou a história, quase chorei. Aguardemos!
Enquanto isso, termino essa newsletter com um trecho de uma das minhas autoras favoritas, Marcella Hazan, no seu livro “La Cucina", que tem na dedicatória o seguinte: “Para - e por - Victor”. Victor era o seu marido e foi por ele que ela aprendeu a cozinhar. E esse trecho precede a receita do molho de alecrim com sálvia, que nada mais é do que um refogado de cebola, sálvia e alecrim que depois ganha a companhia de pancetta e tomates. Diz assim:
“O que mais me encanta na culinária italiana, e o que ainda me excita o interesse, apesar de a vir praticando a vida inteira, é a sua infinidade de recursos, seu admirável poder de adaptação. "Muoio di fame — estou morrendo de fome", declarou certa manhã meu querido Victor, em pé à porta da cozinha. "O que vamos comer no almoço?". "Fiz ensopado de cordeiro", disse eu. "Ah, estou com tanta fome, mas, na verdade, não estou com muita vontade de comer ensopado de carne."
"Você está com vontade de comer o quê?" "Massa, com alguma coisa saborosa e apetitosa."
Preparar algo e não poder servi-lo é deprimente, mas o que acho ainda mais desanimador é assistir ao meu marido comendo minha comida por obrigação, sem entusiasmo. Olhei em volta para ver do que dispunha: havia pancetta na geladeira, sálvia num canteiro na janela e alecrim crescendo no terraço. Numa cesta, sobre uma das bancadas, sempre tenho cebolas. Não tinha tomates frescos à mão, mas havia enlatados no armário. Piquei as cebolas e a pancetta; refoguei rapidamente a cebola no azeite; acrescentei um pouco de sálvia e de alecrim, depois a pancetta e, em seguida, os tomates. Coloquei a água no fogo e, quando ela chegou à fervura, mergulhei lá a massa. No instante em que a massa estivesse cozida, o molho também estaria pronto, e, pelo menos por aquele dia, meu marido estava a salvo de morrer de fome.”
Ahhhh especial! Não tenho nem roupa para uma menção dessas! Obrigada! 💛