Newsletter | Lugar possível #10
Orgulhos bestas; Carta aberta para quem descobriu a cozinha; 5 perguntas para a chef Janaína Torres; Manuê de Bacia e os doces de Paraty; 5 ingredientes e meu molho provençal que "vai com tudo".
Para quem ainda não cozinha
Fiz o meu primeiro botox. Nunca tinha sentido vontade de fazer mas agora o meu olhar pro espelho começou a cogitar a hipótese que já faz parte da vida de 99% das pessoas que eu conheço. Mas, como boa aquariana, eu só faço o que estou de fato convencida a fazer. E aconteceu.
A sensação, porém, foi esquisita. A maioria das minhas amigas saem muito animadas do botox, comemoram o rejuvenescimento que a substância traz pelos próximos 6 meses. Eu não comemorei, ao menos ainda. Fiz mil recomendações pra médica a respeito de todos os meus medos e enquanto escrevo com a anestesia ainda em funcionamento por aqui, tô mais para: “vamos ver no que vai dar”. Os avanços da estética ainda me trazem desconfiança e, pra falar a verdade, aos 50 anos, eu tinha orgulho de dizer que não tinha nenhum procedimento na cara. Especialmente quando as pessoas se surpreendem com a minha idade. Agora, não posso mais falar isso. Já tenho um procedimento na cara. O jogo virou. Começou a busca por um novo “orgulho” diferentão, afinal, aquariana.
Mas foi preciso só o tempo da caminhada do consultório até a minha casa – 10 minutos – pra eu perceber o tamanho da bobagem que é esse pensamento. Desde 2000, quando a marca BOTOX foi aprovada no Brasil para o tratamento de rugas, muito se evoluiu e, hoje, quem quer e quem pode usufrui dessa opção para encarar a vida com mais autoestima. Me lembro do casamento de uma amiga, há exatos 24 anos, em que o marido dela foi fazer um botox na semana da festa. “Tem algo estranho na cara do Alex.... ele não mexe nada”. Era o botox, a novidade do momento, aplicado numa dose ainda duvidosa e sem orientação de que para ficar mais natural ele precisa de alguns dias. Alex estava arrependido, mas já era tarde. Casou sem franzir a testa, nem quando chorou.
Péra. Porque cargas d’água estou eu aqui tomando seu tempo falando de botox já que essa é uma newsletter sobre comida? Sou uma pessoa que faz correlações de assuntos facilmente na minha cabeça. Não é à toa que faço DRs mentais, muitas. E enquanto andava do consultório da dermato pra minha casa e pensava nesse meu orgulho besta, pensei: quantos orgulhos bestas a gente pode ter na vida? Acho que milhares. Conheço muito gente que não vai pra cozinha por orgulhos bestas. “Eu não sei fritar nem um ovo e acho ótimo” é uma frase que eu já vi ouvi muito, especialmente de mulheres que ainda veem na cozinha um lugar de submissão. E de fato, foi. Ainda até pode ser, em relações desiguais. Cozinhar é essencial para todos, homens e mulheres. A gente come todo dia. Escolher o que comer é mais do que um privilégio, é político também. Não saber cozinhar não pode ser um orgulho, pra ninguém. Lugar de mulher é na cozinha e de homem também. Entrem na cozinha, se apoderem dela, deixem de besteira e entendam que saber cozinhar não é preparar à perfeição um boeuf bourguignon. Do mesmo jeito que as minhas amigas me falaram “para de besteira, vai lá logo e faz esse botox”, eu retribuo, pra elas, eles, todos e todes: “para de besteira, vai lá, entra na cozinha, queima logo um arroz hoje que amanhã ele vai ficar melhor”. Cozinha não é dom, é prática. E se você se apaixonar por ela depois, o que não é nada raro, aí pode me mandar whatsapp pedindo dica de panela que eu ajudo com o maior prazer. (né, Ivana?)
Às minhas amigas, que estão se apaixonando pela cozinha, com amor
Ivana é uma diretora de TV que tem horários mil, filha, marido, ex maridos e etc. Sempre me olhou com alguma admiração porque eu sabia cozinhar enquanto ela não sabia nem fritar um ovo. Um belo dia, ela me manda mensagem no whatsapp: “Luluzinha, qual é o melhor óleo pra cozinhar?”. Um sopro de alegria bateu em mim, sério. Disse que ela estava querendo aprender o básico e já fez uma bruschetta. “vou sempre fazer as perguntinhas idiotas... quando vai fazer bruschetta, tira as sementinhas do tomate ou corta tudo junto?”. Nenhuma pergunta é idiota e se a pergunta existe é porque a pessoa está pensando antes, o que na cozinha é lindo, é essencial. Passam alguns minutos e ela me manda uma foto linda da filha pequena comendo a bruschetta preparada por ela. “aproveitei e fiz de cogumelos também”. Olha, gente, sério: eu ganho meu dia quando isso acontece. Mais uma que vai saber fazer escolhas, mais uma que deixa de ver a cozinha como um lugar de desespero, mais uma que vai criar memórias e repertório para quem esta vindo depois.
Bia é uma amiga de longa data, da faculdade. Essa aí sempre vociferou contra a cozinha. “pelo amor, cozinha não é pra mim. O Nico que faz tudo aqui em casa, graças a Deus”. Nico é o marido, que de fato cozinha lindamente. Na minha memória afetiva, constam muitas noites de risadas no balcão da casa deles, Nico cozinhando e a gente esperando o banquete que estava por vir. Foi o Nico que me apresentou anos e anos atrás a “Bíblia”: nosso livro de cozinha preferido, “ Fundamentos da cozinha italiana clássica” da Marcella Hazan. Luiz, o filho do casal, sempre comeu a comida que o pai fazia. Eis que a família se mudou para a Alemanha. E depois de uns meses entre aulas de alemão e de adaptação na nova vida, Bia posta no Instagram uma foto de uma comida, caseira, um macarrão de arroz com legumes, cogumelos e tofu. Já estranhei. Na legenda, uma declaração que me fez sorrir (e quase chorar): “Imigrar é mudar o foco, assumir uma vida completamente nova. Essa imagem diz muito sobre isso. Precisei cruzar o oceano para me reconectar com o que há de mais importante. Aqui, experimentei e aprendi. Cozinhar foi uma descoberta e tanto. Esse prato foi totalmente planejado e feito por mim. Não é pouco! Alimento é afeto”. Como é que não chora lendo isso assim, de repente, de uma amiga que falava com orgulho que não sabia cozinhar?! “A viagem nisso tudo é que eu sempre achei que não sabia cozinhar, mas de tanto ver as pessoas cozinharem, Nico cozinhando, minha avó cozinhando, outras pessoas cozinhando, foi muito simples. É muito bom cozinhar pros outros, né? O Lu comeu minha comida felizão”, foi o relato por áudio quando nos falamos por whats. Minha alegria não cabia em mim.
Eu já escrevi pra caramba até aqui e tem muito mais newsletter pra você ler. Então, com esses relatos, termino essa crônica que eu espero que te inspire. Às minhas amigas, novas cozinheiras do pedaço, meu amor todinho e meu desejo de que continuem vendo na cozinha um lugar cada vez mais possível.
5 perguntas para.... JANAÍNA TORRES
Se você já teve a oportunidade de comer a comida da chef Janaína Torres – reconhecida como a melhor chef do mundo em 2024 - pode ter lembrado em algum momento de um sabor conhecido. Algum assim, da sua infância. Ou algo que tenha sido feito pela sua mãe ou avó. Eu acho a comida da Janaína tem esse sabor de casa, com toda a sua sofistação. Amo o bife a milanesa cortadinho que ela serve no seu Bar da Dona Onça, amei uma berinjela com ragu de porco que ela fez num dos menus que assinou da A Casa do Porco, amo o licor de jabuticaba que ela faz e me lembra o que minha tia do interior paulista fazia. Já tive duas vezes a honra de comer a sua famosa feijoada. E numa visita que fiz no sítio Rueda, ela recebeu o grupo com uma sopa de cebola que eu lembro até hoje.
Pra nossa felicidade, Janaína estreou o primeiro menu degustação da história do seu bar da Dona Onça. E tá lindão, é ela toda. Sobre ele falei no meu Instagram, com vídeo e tudo. Pra cá, a convidei a responder as 5 perguntas dessa sessão.
1- Como você se define quando está na cozinha?
J.T.: Sou uma cozinheira que vivenciou a cozinha cotidiana das casas, que evoluiu dentro de suas próprias técnicas, que bateu o pé pela cozinha brasileira e que acredita muito que a cozinha técnica está muito ligada à cozinha ancestral. Sou comprometida com o que proponho e uso a cozinha como ferramenta de educação.
2- Porque é mais difícil pra mulher provar que sabe cozinhar quando ela vai para o universo profissional?
J.T.: É muito difícil mesmo. E eu notei mais ainda depois que me separei (Janaína foi casada com o chef de cozinha Jefferson Rueda). Antes eu não tinha nenhuma noção do machismo, até que me deparei cruelmente com ele e hoje convivo com ele todos os dias, com muitas falas e atitudes que me assustam muito. E eu não sei por que é assim, é difícil de entender.
3- Já li você falando uma expressão que eu adorei que é “comida popular afetiva”. Como as suas memórias afetivas com a cozinha te levaram aonde você chegou? E qual é a comida afetiva que você faz quando quer abraçar alguém ou a si mesma?
J.T.: Eu faço hoje uma cozinha com técnica genuína brasileira, prezo muito e respeito muito nossas formações. Talvez muitas pessoas confundam isso com cozinha afetiva e achem que é uma cozinha sem técnica. Quando na verdade é o contrário. Quanto mais cotidiana, mais tecnicamente ela performa, se tornando clássica e ao mesmo tempo afetiva pela experiência de sabores. Sobre as comidas que mais me abraçam, eu sempre faço Cozido À Brasileira, Sopa de Cebola e Feijoada.
4- Ser premiada no mundo estrelado dos chefs parece, aos olhos das pessoas, algo muito glamouroso, poderoso. Qual é o verdadeiro poder da comida, na sua opinião?
J.T.: O poder da comida é transformador. Ela te leva a conhecer lugares e culturas, te faz aprender todo os dias, mostra oportunidades e faz você ter maior responsabilidade com o todo, desde os seus fornecedores, produtores e equipe de trabalho até as pessoas que acordam pensando que vão ao restaurante provar a sua comida, a sua cultura e tudo aquilo que você é através dos seus negócios.
5- Por último, um segredinho culinário que você não deixa nunca de fazer quando está cozinhando, seja em casa ou no restaurante.
J.T.: O meu maior segredo são os meus refogados, que eu frito e pingo água por diversas vezes. Isso eu aprendi com as cozinheiras populares dos cortiços por onde morei na minha infância.
** O pinga e Frita é uma técnica brasileira familiar, geralmente usado para carnes e para cozimentos longos. Como o nome mesmo diz, o pinga e frita consiste em fritar a carne ou o que seja, e ir pingando água fervente aos poucos para que o alimento cozinhe com o seu próprio suco. A técnica também ajuda a remover o fundinho de panela onde se concentra bastante sabor.
Que tal um bolinho em Paraty?
Estive em Paraty depois de muitoooos anos e me encantei por tudo. Tudo tudo tudo. Por isso, aos poucos vocês verão por aqui e ali algo de lá que bateu gostoso no meu coração. Vou começar pelos doces de Paraty, que são uma riqueza e formam muito da cultura e da história da cidade. Em cada rua tem um carrinho de doces, coisa organizada, com rodízio dos pontos, para que os vendedores possam variar os locais e vender a sua mercadoria.
Mas uma padaria fundada em 1900 e com o nome mais fofo do mundo, Padaria Esperança, se tornou um ponto certo em todos os meus dias por lá. Tudo por causa dos doces. Mais conhecida como a “padaria do Zuzu”, eles ainda mantém vivos doces típicos e carregados de tradição como o Massa Pão – uma espécie de queijadinha sem palavras pra descrever -, o pé de moleque caiçara – feito com farinha de mandioca, melado e muitooooo gengibre -, e o Manuê de Bacia, um bolo marronzinho, feito com melado de cana. Eu comia todos sem descobrir o meu preferido. Conversei com a Dulci, que hoje toca a padaria da família do marido, e é a responsável por perpetuar as receitas de 5 gerações atrás. Gentilmente, ela compartilhou com a gente a receita do Manuê de Bacia, esse nome tão peculiar de um bolo tão gostoso.
“Lembro sempre da minha sogra e do meu sogro falando que o manuê é um bolo tão antigo quanto a cidade, mas ele passou por várias mudanças. Na verdade, os portugueses usavam açúcar. Depois, com a escassez da matéria prima e as mulheres africanas com suas habilidades foram usando o que nós tínhamos em abundância que era o melado da cana de açúcar. No final do século 18 tinha mais de 100 engenhos em Paraty. Sobre o nome, como esse era um bolo muito denso, ele era feito em uma bacia grande e assado em tabuleiros. Assim ele foi chamado manuê de bacia.”
Receita do Manuê de Bacia
700 gramas de farinha de trigo
35 gramas de fermento em pó
1 litro de melado
100 gramas de margarina
2 colheres (sopa) de farinha de mandioca
Modo de fazer: Misture tudo em uma tigela com um batedor de arame ou batedeira. Coloque para assar em tabuleiro grande untado e enfarinhado por 40 minutos no forno pré aquecido a 180 graus.
NOTA: eu ainda não fiz o bolo, mas quando eu fizer, deixarei o fermento para ser misturado por último, logo antes do bolo entrar no forno.
Provençal e as muitas maneiras de variar com os mesmos ingredientes
Azeite, alho, manteiga, limão, salsinha. 5 ingredientes que podem fazer a felicidade acontecer de muitas formas. Eu chamo isso de molho provençal, ao menos é o meu molho provençal. Mas se você colocar “molho provençal” no Google, uma infinidade de opções aparecerão. Eu cheguei a ver até com leite de coco. Hahahaha. Enfim, pode ter tomate, pode ter vinho branco no lugar do limão (ou os dois e eu adoro), pode ter pimenta calabresa como faz a Paola Carosella e de fato é ótimo. Eu uso salsinha, por exemplo. Mas quem tem uma profusão de ervas frescas à disposição, deve fazer uso delas, de todas elas! Todas essas possibilidades fazem com que eu adore ainda mais esse molho que vai com quase tudo. Dia desses eu recebi amigos em casa e comprei esses ingredientes e com eles fiz 3 pratos diferentes: um camarão com catupiry na versão aperitivo, uma lulinha salteada com iogurte grego temperado e um arroz que depois de pronto e já com o molho leva bastante limão e fica uma delícia.
O camarão com catupiry fez sucesso tanto com os convidados quanto nos meus stories quando publiquei, então aqui vai como eu fiz!
Temperei o camarão com sal, pimenta do reino e raspas de limão. Numa frigideira antiaderente, selei rapidamente em levas para não soltar água e reservei. Na mesma frigideira que ficou com o fundinho desses camarões selados, eu coloquei alguns dentes de alho fatiado com azeite, em fogo baixo, para dar uma murchada e sem deixar queimar. Aí, coloquei suco de limão, manteiga e mexi. Pode ser vinho branco aqui, quando tenho aberto, uso. Mas aí você precisa deixar evaporar o álcool antes de colocar a manteiga. Coloco suco de limão e manteiga na quantidade que eu quero de molho. Provei o sal e por último, no último segundo, coloquei a salsinha fresca picada. Voltei os camarões pra panela, mexi bem e desliguei o fogo.
Numa tigela, coloquei catupiry, creme de ricota e misturei. Queria uma textura menos densa pra esse creme, algo mais macio, para o camarão se lambuzar sem dificuldade. Você pode esquentar essa mistura na panela mas eu coloquei direto na tigela de servir e levei ao microondas para esquentar. Por cima, foram os camarões com o molho todo e aí, é só comer tudo junto. Eu fiz como aperitivo, pra compartilhar, e um pãozinho não faria mal a ninguém nessa situação.
Eu fui
Esse mês provei 3 menus do tipo degustação, todos incríveis. Alex Atala, Janaína Torres e Jefferson Rueda, só craque. Compartilhei no meu Instagram, fiz videozinho de reels e tudo.
Deixo aqui os links para quem não viu e quer ir lá dar uma olhadinha pra ficar com água na boca.
Menu Degustação D.O.M. (Alex Atala)
que delícia de crônica
Como vc escreve bem, minha amiga! Poderia ler páginas e páginas dessas palavras deliciosas! Que saudade do nosso Fogão!!!! Love u!