Newsletter | Pertencer #9
O sertão paraibano e o orgulho de ser quem se é; 5 perguntas para o chef Onildo Rocha; Consegui a receita do riquíssimo bolo pé de moleque; Uma fortaia para pertencer; A Paraíba que mostrei na TV.
De onde a gente vem
Fiz uma viagem pro interior da Paraíba. E nessas viagens sempre presto atenção nas pessoas. Nas expressões, no jeito de falar, nas palavras que elas escolhem. Foi um mergulho maravilhoso. Alternei momentos de “caramba, como somos diferentes” com outros de identificação total. Me perguntei mil vezes como achava aquela realidade e aquelas pessoas tão distantes de mim e ao mesmo tempo tão familiares, tão íntimas de alguma maneira. Somos todos brasileiros e, por maior que seja esse nosso país, quando a gente o conhece um pouco mais a gente vai se tornando grande também, mais completo. A gente entende de onde a gente vem. Não importa se você é descendente de europeus, como eu. Ou se a comida da sua casa não tinha tucupi. Quando a gente conhece o Brasil, a gente entende de onde a gente vem.
O paraibano tem uma coisa linda que é um orgulho imenso de pertencer. Quantos de nós temos isso? Parei pra pensar sobre isso na volta pra casa. Não foi só uma vez que eu ouvi de gente lá: “eu me orgulho de ser paraibano”. Que lindeza isso. O César, guia no Lajedo Pai Mateus, falou pra mim: “O sertão nasce com a gente”. Que forte essa declaração. Volta um pouquinho as palavras e lê de novo... O sertão nasce com a gente! Quando a gente se sente pertencente de um lugar, o orgulho de ser quem se é faz o olho brilhar. No cariri paraibano, eu vi o olho de todo mundo que eu encontrei pela frente brilhar.
O seu Artur é um senhor de 65 anos que na aparência parece mais de 70. Mas quando ele abriu um sorriso, um menino de 15 apareceu ali na minha frente. Ele também é guia, mas no Lajedo do Marinho, e quando eu pedi pra conversar com ele, com uma câmera de TV on, a resposta foi a seguinte: “posso sim. Pode perguntar o que você quiser. Se eu souber responder, eu tô aqui a disposição”. Ou seja, não importa de onde eu vim, o que eu sei, o que eu vou perguntar. Seu Artur tem seu conhecimento, de subir e descer o lajedo desde pequeno, e sobre ele talvez só ele possa falar. E seu Artur sabe a grandeza disso.
Por essas e outras que toda cozinheira e cozinheiro da Paraíba faz uma carne de bode - com bastante cebola, tomate, cominho, colorau e cheiro verde - ou uma galinha cabidela, com o molho de sangue mais potente que eu já comi, e serve como um banquete. É a comida da vida deles, é o que os representa. É pra ter orgulho mesmo! É essa comida – ora de festa, ora de casa - que ajuda a contar o que é a Paraíba. E os paraibanos, ah, os paraibanos têm muito orgulho da sua Paraíba!
5 perguntas para... ONILDO ROCHA
Foi pelas mãos desse chef de cozinha paraibano que eu conheci o cariri de sua terra e, assim, um pouco mais do Brasil. Onildo é um grande companheiro de viagem - alegre, gentil, divertido, generoso - mas também um defensor das riquezas de onde veio. Hoje, comandando um restaurante de altíssima gastronomia em São Paulo, o Notiê Priceless, ele não esquece de temperar tudo o que faz com o que está em sua bagagem, a que o acompanha da Paraíba para onde for. Por isso, essa coluna da newsletter é, e só poderia ser, com ele.
1- A cozinha é um lugar poderoso de pertencimento. Quando você está cozinhando, o que te leva pra esse lugar?
O.R.: A cozinha, pra mim, tem um sentido de libertação de uma ansiedade.. Eu era uma criança hiperativa e dois pilares que me tiraram dessa ansiedade foram a música, por causa da rigidez e da disciplina – fui musicista dos 8 aos 18 anos –, e a cozinha, que me tem até hoje. A cozinha também tem a disciplina mas aliada à criatividade, ao poder da transformação de um alimento, o poder de alimentar uma pessoa, isso dá uma sensação de pertencimento absurda. Eu sou muito feliz dentro da cozinha e sou muito feliz alimentando as pessoas.
2- Como paraibano e chef de um restaurante brasileiro de alta gastronomia em São Paulo, qual é o tempero que você mais usa – pode ser figurado – pra mostrar quem você é?
O.R.: O tempero que mostra quem sou eu tem a ver com o movimento armorial**. Quando eu me encontrei dentro desse manifesto, eu passei a fazer uma cozinha mais embasada nos meus sentimentos. Me aproximar muito do agricultor, da história dele, o que ele pensa e não só da técnica que ele usa faz muito sentido pra mim como cozinheiro. Então, o tempero mais importante pra mim é a cozinha armorial, que foi introduzida por mim e tenho muito orgulho de trabalhar dentro desse manifesto.
3- Qual é a comida, prato ou receita que a sua memória resgata na hora que você precisa “voltar pra casa”?
O.R.: Eu tenho uma relação com o milho muito forte. E isso eu fui descobrir com o tempo. Por causa das festas juninas e da abundância do milho nas nossas vidas, como nordestino. Primeiro com o cuscuz, com toda simplicidade dele, a magia que acontece ali, o sabor me remete muito a voltar pra casa. E o Mungunzá que é muito típico do sertão da Paraíba - a canjica como se conhece no sudeste – que na minha casa sempre foi salgada e não doce, como todo mundo conhece. Na minha casa sempre foi feito como se fosse uma feijoada.
4- Quais os ingredientes você acha que todo mundo, de norte a sul do Brasil, deveria conhecer para se sentir mais brasileiro?
O.R.: Pergunta difícil. Acho que é um ingrediente que na verdade todo mundo conhece um pouco, que é a macaxeira. Ela é a maior riqueza da gente, símbolo de ancestralidade, dos povos originários. Tá aqui no Brasil desde sempre e a gente usa até hoje, acho emocionante isso. A farinha de mandioca, por exemplo… toda vez que eu vou numa casa de farinha de mandioca eu fico impressionado com a quantidade de sabedoria que tem ali e como esse ingrediente é complexo. Mas a gente precisa abrir mais ainda o nosso conhecimento e as possibilidades de uso dos subprodutos da mandioca. Eu já fiz um trabalho com a farinha, por exemplo, que era usá-la em muitas preparações sem ser farofa. Hoje em dia o brasileiro usa a farinha de mandioca basicamente de duas formas: na farofa e no pirão. Mas ela é muito mais versátil, muito rica.
5- Durante a viagem, vi você se emocionar no Lajedo Pai Mateus quando um sanfoneiro surgiu cantando uma música que falava do orgulho de ser paraibano. Pra você, o que é ser paraibano?
O.R.: O que me levou à emoção aquele dia, claro que foi aquele lugar, aquele momento que eu esperava muito, poder levar pessoas de fora pra lá conhecendo a minha cultura foi muito especial e esperado. Me emociona mesmo poder dividir isso. Mas o Paraibano é uma criatura muito afetiva. Eu sou um paraibano enraizado, com muitas memórias da minha terra. A Paraíba me assenta, me enraíza, me dá sustento pra tudo. A simplicidade e o amor daquelas pessoas é emocionante... Pra um paraibano, o que importa é o que você traz de sentimento porque é isso que eles te devolvem. O amor pelo ser que você é e não pelo que você tem é uma coisa que eu encontro na Paraíba e que me emociona.
** O Movimento Armorial foi criado em 1970 por Ariano Suassuna com o objetivo de criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste brasileiro.
O bolo pé de moleque, uma iguaria nordestina
Na minha visita ao Cariri Paraibano, fomos levados a uma casa de farinha, a Casa de Farinha dos Ferreiras. Um balé lindíssimo ver toda a família trabalhando pra transformar a mandioca nesse ingrediente que está na casa de 10 entre 10 brasileiros, segundo o Data Boca. Os Ferreiras recebem os turistas com uma mesa recheada de itens deliciosos feitos com a macaxeira, exaltando mesmo essa Rainha da nossa culinária. Coxinha, biju, bolos... Um deles me arrebatou: o bolo pé de moleque. Eu nunca tinha ouvido falar e depois que postei nos meus stories vários nordestinos vieram se juntar a mim nesse fã clube e com memórias muito lindas de receitas de vó, de mãe, de família. O bolo pé de moleque é uma iguaria, cheio de especiarias, melado de cana, coco, uma riqueza tão grande que eu, depois que provei, não entendi como é que nunca comi isso num restaurante de alta gastronomia. A gente exalta muito pouco a história que a gente já tem escrita, o nosso patrimônio!
Bom, aí que conversei com a Elenice – uma das Ferreiras – e consegui a receita. É feito com massa puba – bem mais comum no nordeste - mas se você é de outra região como eu, pesquisando dá pra achar. Eu fiquei tão obcecada por esse bolo que pesquisei mil receitas dele e cheguei a ver uma versão feita com mandioca crua ralada e farinha de mandioca. Enfim, não sei. Eis aqui a receita da Elenice e eu recomendo muitíssimo que você tente fazer.
Ingredientes:
1 kg massa de mandioca mole ( massa puba)
1 litro de melaço de engenho (se preferir, pode substituir por rapadura, derretendo a rapadura antes separadamente)
1 xícara de 200 ml de farinha de trigo (pode ser com ou sem fermento)
250g de manteiga
250g coco ralado
250g leite em pó
100g cravo
100g erva- doce (em pó - pode aquecer no fogo e depois amassar)
2 ovos
Modo de preparo:
Mistura o melaço com a massa puba, o cravo e o erva-doce em uma vasilha. Em seguida no liquidificador coloca os ovos, manteiga, leite, 125g do coco e acrescente um pouco de água para a massa ficar homogênea. Junte tudo na mesma vasilha e agora acrescente a farinha de trigo, o restante do coco e mexa bem. Unte uma forma de sua preferência, coloque a massa pra assar em forno médio por 90 minutos aproximadamente (atenção: se dividir em forma menores o tempo cozimento será menor). O ideal é consumir bem frio.
OBS: Dá pra colocar castanha de caju misturada picada ou amendoim picado no meio da massa.
Minha receita de pertencimento
Taí uma difícil tarefa: escolher uma única receita que me traga esse sentimento de pertencer. Talvez a gente nunca pense em comida dessa forma. As receitas mais comuns da nossa casa fazem parte de um cotidiano que não é racionalizado. Mas elas estão lá: acompanhando a gente ao longo da nossa vida. Ou seja, fazem parte de nós, da nossa história. Pensando aqui, uma receita muito simples me veio à cabeça: a fortaia. Nada mais é do que uma omelete italiana e lá em casa ela sempre foi feita com cebolinha. É uma receita mais presente na vida dos meus pais, mas ficou ainda mais marcante pra mim no dia que viajamos para Bento Gonçalves pela primeira vez e minha mãe ficou emocionada ao ver num restaurante de comida italiana a fortaia como era feita na casa dela desde pequena. A partir desse dia, a fortaia ocupou um lugar a mais no meu coração, me sinto mais Tezoto quando a preparo. Mas ela é tão comum em casa que eu nem tenho foto dela!
Ela é feita assim: numa frigideira, coloca bastante cebolinha picada. Quanto mais fininha a cebolinha melhor. Aquelas muito largas não são boas para isso. Mas coloca bastante mesmo, porque ao ser refogada ela murcha a beça. Pode encher toda a superfície da frigideira com a cebolinha picada. Aí no fogo baixo, deixa a cebolinha murchar, depois de colocar um pouco de sal. Mexe de vez em quando. Por cima dela refogada, vão os ovos já previamente batidos e com sal. Só joga por cima e deixa que o ovo tome conta de toda a superfície da frigideira. Depois que o ovo cozinhar um pouco nas laterais, puxa para o centro com uma espátula e deixa que o restante do ovo cru escorra para as bordas. Agora, tampe a panela e deixe que a fortaia acabe de cozinhar tampada. Uma boa fortaia não fica moreninha embaixo, não. Ela fica cozida e ainda clara, por isso a importância do fogo baixo.
Uma opção deliciosa é colocar queijo ralado bem fininho nos ovos crus já batidos. Se optar por fazer assim, cuidado com o sal pois o queijo já é salgado.
Para ver a Paraíba e sua gente na TV
Essa viagem à Paraíba rendeu uma matéria especial inda que eu dirigi, roteirizei e editei e que foi exibida no programa É de Casa, na TV Globo. São 17 minutos onde pessoas locais, moradores que fazem desse sertão a lindeza que é, falando sobre a sua vida, sobre a sua cultura, sobre a forma com que se enxergam no mundo. Tem muita comida, claro. Mas tem eles, os paraibanos falando. Vale a pena demais.
Para assistir à matéria, clique aqui.