Newsletter | Restaurar #8
Retorno depois de 2 anos; Rio Grande do Sul e as memórias que se foram; chef Marcelo Schambeck; um carreteiro; pra ver e rever o RS; canja pra restaurar.
Antes, deixa eu explicar.
Mais de 2 anos se passaram. E não é que você abriu a sua caixa de email e eis-me aqui? Não sei dizer por que eu parei de escrever essa newsletter. Poderia colocar a culpa no tempo, na falta dele, como a gente sempre faz. Mas acho que não deve ter sido só isso. Nunca é. De lá pra cá, muitas newsletters novas chegaram, eu mesma passei a assinar várias e reativar esse canal de conversa sempre esteve na minha vontade, no meu coração. E pensava: mais uma?
Volto agora, sem muita explicação e convicta: sim, mais uma. Eu espero, com toda força, que apesar de você também já ter assinado mais um monte de boas e novas news, não se incomode com mais essa. Pelo contrário. Que comemore comigo e goste desse retorno. Que elas sejam um momento de pausa do teu dia e que te restaure, como faz a comida.
A gente tempera com a memória.
A essa altura não preciso fazer nenhuma introdução contextualizando a situação em que se encontra o Rio Grande do Sul e os gaúchos. É do conhecimento de todos no Brasil e fora dele. As cenas foram e ainda são impactantes. A união por ajuda e doações dá um alívio mas ainda temos muito a fazer. Já a força e a coragem dos que lá estão, sobrevivendo, esperando a água baixar, limpando o que restou das suas casas, tirando barro, procurando parentes... nossa. Cheguei a escrever que é um exemplo mas é muito mais do que isso.
Já nos comovemos com a tragédia, agora o que me consome são as perdas e tudo o que será preciso reconstruir. E não falo apenas materialmente. Fiquei pensando muito em quem, junto com a casa, agora não tem mais um retrato da família naquelas bodas dos avós, aquela camiseta que ganhou do namorado que depois virou marido, uma carta escrita pela melhor amiga aos 14 anos, a toalha bordada pela mãe, um prato de bolo que ganhou de casamento, aquele bichinho de pelúcia do filho que por anos e anos só ele o fazia dormir. As lembranças se foram com as águas. E por mais que a gente as mantenha no nosso coração, os objetos nos ajudam a fixá-las na nossa memória. Cada vez que a gente pega num item que nos transporta a algo bom, o cérebro identifica e o coração se acalma. Já reparou?
E quantos livros de receitas se foram? Quantas histórias se perdem quando o nhoque da tia Valda, que estava anotadinho lá numa página amarelada de um caderno de 1964, se desmancha correnteza afora? Não é só a receita... é a letra de quem escreveu, é o jeito de colocar as medidas, é aquela observação anotada a lápis depois tanto praticar... é muita coisa.
Claro que falar de comida pelo lado afetivo num cenário como o atual, ainda tão urgente, pode parecer uma afronta. Muitos estão sem, vivendo do que os outros doam. Mas é ela quem restaura, não é? É a comida que nos dá forças, não só fisicamente.
Não é à toa que muitos cozinheiros se voluntariaram rapidamente para restaurar quem perdeu tudo. É o caso do chef Marcelo Schambeck, dono do delicioso Capincho em Porto Alegre, que abriu espaço na sua cozinha para produzir papinhas para bebês quando soube que nos abrigos os pequenos não estavam conseguindo comer porque a comida era feita pensando nos adultos. É ainda o caso do chef gaúcho Gustavo Nichterwitz, do super bacana Solos, que está com a família abrigada numa biblioteca enquanto cozinha todos os dias para os desabrigados que se instalaram numa escola em frente a um dos restaurantes que comanda. Café, almoço, lanche da tarde e jantar, todos os dias, para fazer com que essas pessoas tenham um pouco de acolhimento por meio da comida enquanto esperam o dia passar num colchão doado, que é tudo o que eles têm agora. “A gente virou um refeitório para esse abrigo mas na verdade é aqui que quem está lá, sem saber se volta pra casa, vêm pra respirar com um pouco de alívio quando comem um bolo e tomam um café fresco à tarde”, me disse o Jackson Prado, um dos sócios do Solos. E é isso mesmo.
A comida salva. Seja no nosso dia a dia, seja em situações que a gente jamais imaginou viver.
As memórias temperam. Seja o que a gente prepara para nos restaurar, seja o futuro que está logo ali.
(Se puder, ajude uma cozinha solidária no Sul, como a do Gustavo e a do Marcelo. Eles estão tocando o dia a dia com doações. Entrem no perfil deles no Instagram pra fazer contato. Ao longo dessa newsletter tem os links. Qualquer ajuda vale.)
5 perguntas para... MARCELO SCHAMBECK
Eu sempre fui, há muito tempo, fã do chef Marcelo Schambeck, já citado nessa News. Não me lembro como comecei a segui-lo no Instagram mas a sua comida sempre me remeteu a cheiro de coisa feita por quem ama o que faz. De quem tempera com memórias. E quando estive em Porto Alegre no ano passado, fui não só uma como duas vezes ao seu restaurante Capincho no período de 5 dias que passei na capital gaúcha. A comida do Marcelo é boa demais, o sorriso que ele dá aos clientes mais ainda.
Nos últimos dias, o vi batalhar pelos seus conterrâneos em meio à incerteza de como ficaria a vida do seu próprio restaurante. É mais que um negócio, é o seu trabalho e fonte de renda de muita gente que com ele também trabalha. O Capincho não foi atingido pelas águas, graças a Deus, e por isso está retomando as operações pra quem aos poucos está tendo o privilégio de voltar à normalidade, se é que podemos chamar assim. Na verdade não podemos, não. Uma frase muito forte de um rapaz que ajudava a namorada a tirar todo barro e lama de dentro de casa mexeu comigo: “Não dá pra falar em reconstrução ainda. É só estar junto.". E é isso que os pequenos produtores, negócios locais e restaurantes querem agora: que quem pode esteja junto. Do jeito que for.
Pra voltar com essa coluna que eu gosto tanto da minha newsletter, só poderia ser o Marcelo o convidado. E que bom que ele topou responder, entre um respiro e outro pois a vida ainda anda confusa demais. Obrigada, Marcelo.
1- No meio do caos que se tornou a rotina de quem mora no Rio Grande do Sul, qual foi a comida que te restaurou depois que tudo aconteceu?
MS: Nestes últimos dias não só a rotina virou de cabeça para baixo mas a minha alimentação também. Tenho comido mais lanches. Mas sexta passada eu e a Flávia, minha esposa, fomos na parrilla que tem do lado no Capincho e pedimos um bom entrecot gaúcho. Com certeza foi a melhor refeição dos últimos dias, não só pela qualidade da carne mas pelo momento que conseguimos parar um pouco e curtir a refeição.
2- Quando você soube que os bebês não estavam comendo nos abrigos, o que te levou pra cozinha e fazer você mesmo as papinhas? Algumas pessoas tentariam doações de papinhas prontas, por exemplo. O que te fez acender o fogão da sua própria casa?
MS: Alimentação infantil é muito importante para mim, tenho dois filhos, e sei bem como uma criança bem alimentada e nutrida fica mais calma. Estas crianças já estão numa situação super complicada, fazer as papinhas é uma forma de amenizar o problema atual, e não só para os bebês mas para a família toda.
(Assista ao vídeo onde Marcelo compartilhou um pouco da produção das papinhas em seu Instagram)
3- O gaúcho tem muitas comidas de memórias. Qual é a sua e de onde vem?
MS: Picadinho de carne com quiabo! Uma comida que minha mãe faz, sempre adorei, me traz boas lembranças.
4- Eu fiquei pensando muito se numa situação como essa, a gente não acabaria mudando o jeito de cozinhar ou mesmo não mudaria o nosso jeito de comer daqui pra frente dada a escassez de muita coisa, como aconteceu depois de Guerras por exemplo. O que aconteceu por aí mudou alguma coisa na sua forma de cozinhar?
MS: O descarte será muito mais cuidadoso e as compras mais cautelosas. Mas o que mais me marcou foi a falta de água, ficamos mais de 15 dias sem água. Foram dias bem complicados sem ter água encanada, ficamos a base de galões, assim ficou mais claro de ver o quando desperdiçamos.
5- O que você cozinharia para todos os seus conterrâneos se pudesse juntá-los todos numa mesa?
MS: Um bom churrasco, com tudo que temos direito 😅. Boas carnes e MUITOS legumes, salada de batata, tomate com cebola, farofa, aipim cozido e um bom vinho da nossa região.
Um carreteiro.
Quando eu estive em Porto Alegre em setembro do ano passado pra gravar o último episódio da série Prato Feito, da TV Globo com a Rita Lobo, a gente andou muito no Mercado Municipal de lá, que com a tragédia das enchentes, ficou debaixo de água. Era época da festa Farroupilha e as lojas exibiam com muito orgulho o seu charque e os seus muitos tipos de arrozes.
Eu mesma comprei um charque e trouxe pra São Paulo. Queria fazer um carreteiro, claro. E a forma com que todos explicavam a sua receita – pelo que entendi cada um tem a sua - era uma delícia de ouvir. Parecia que estavam contando uma história, com direito a sonoplastia e tudo.
Pedi ao chef do Solos, Gustavo Nichterwitz, que mencionei no texto de começo dessa newsletter, que me contasse como é o seu carreteiro. Ele me mandou por áudio, numa pausa que teve, num sábado. E olha que só que delícia de relato. E de receita!
“Se tem um prato que habita o imaginário das casas gaúchas é o carreteiro. A gente faz carreteiro com carne fresca, com charque, com carne de churrasco do outro dia. A carne mais o arroz é uma receita muito forte e cada família tem seu prato, cada um faz do seu jeito... As diferenças vão desde “o que tu frita antes, o alho ou a cebola?” até “que ervas tu usa?” ou “em qual panela tu vai fazer?”. É uma coisa muito forte na culinária familiar. E nesse momento, falar de comida de casa, comida de família é falar sobre amparo também, em meio aos desastres climáticos e as tragédias que têm acontecido desde setembro do ano passado no Estado.
Lá em casa a gente tem um modo de fazer, e a mãe usa a mesma panela há uns 40 anos. Aqui agora, depois que eu me casei, faço numa panela normal mas a panela que a gente foi ensinado pela mãe a fazer, eu e meus irmãos, é uma panela de ferro.
Eu gosto muito do carreteiro de charque mas o que eu mais gosto é o de costela do outro dia. A gente desossa a carne, corta bem pequenininho, bem fininho e aproveita toda aquela gordura que gelifica em volta da carne depois que ela esfriou na geladeira. Com a própria gordura a gente vai refogar tudo. Daí, tu larga ali na panela os pedacinhos da costela com aquela gordura, vai dar um tonzinho defumado, aí coloca o alho e a cebola, um molhinho de tomate, um pouco de tomate fresco e refoga, refoga e refoga. Vai virar um molho espesso. É uma espécie de sofrito, que a gente vai chamar de “sofrito gaúcho”, ou seja, uma pasta bem grossa. Aí, tu põe o arroz – a gente usa o arroz agulhinha – e tu frita, frita e frita esse arroz até dar uma caramelizadinha. Depois que ele tá bem amarronzado a gente põe a água.
A mãe faz quase um pinga e frita caipira, ou seja, ela usa o mínimo de água que puder. Se for pouco arroz, nem água ela usa, cozinha o arroz só no molho de tomate. Se é bastante, precisa de um pouco de água mas não é muito. Vai colocando de pouquinho e pouquinho e aí o arroz vai dar um “peguinha” no fundo. Isso dá muito sabor. O arroz vai começar a crescer, ficar maior na panela e quando chegar no finalzinho ali , quando a gente não vai mais mexer no arroz, a gente joga ovos e tampa a panela... O ovo fica em cima do arroz cozido, cobre todo ele. A gente tenta deixar a gema mole e depois enche de salsinha ou cheiro verde. A mãe usa bastante salsinha. E aí fica aquele verde com o ovo embaixo e o carreteiro cozido na própria água do tomate com a gordura bovina que já tá naturalmente no assado da costela... é demais. Tampa a panela um minutinho pra salsinha suar e pronto.
Quando a gente faz com charque, a grande sacada é cortar em cubinhos e colocar no arroz. Como tem bastante sal no charque, a gente não salga o carreteiro, o sal que vai é da própria dessalga do charque enquanto cozinha. Então a gente corta bem pequenininho, faz o refogado, não salga nada e faz o carreteiro de charque.
Acho que esse é um dos pratos da vida. Forma o caráter culinário de boa parte do povo gaúcho.”
Uau! Delicioso, né? Deu pra sentir o cheirinho que invadiu a minha cozinha imaginária e ouvir o chiado do refogado do Gustavo ganhando o fundo da panela. Como muitos pratos do dia a dia e afetivos, Gustavo não tem fotos dele. No final, achei até bom. Assim cada um de nós pode mergulhar nessa descrição e cocriar essa receita da família dele, fazendo ela ser um pouquinho nossa.
Por isso, aqui vai um conselho: por mais que não tenha as quantidades, essa receita que é quase uma crônica merece ser feita por você aí, do seu jeito, com as quantidades que seu coração mandar. É só ler, visualizar e eu sei que vai dar muito certo.
EXTRA: Não pude deixar de compartilhar com vocês a voz do Gustavo contando pra mim como ele aprendeu a fazer carreteiro. Torna todo o relato acima que eu apenas transcrevi ainda mais especial.
Qual é a comida que te restaura?
Eu começo: a canja da minha mãe. A gente chama de canja italiana. Ela é branca, sem cenoura, sem batata, sem salsinha. Desde que eu me entendo por gente, canja é isso. Água, cebola, alho, louro se tiver, frango, arroz e ovo. São esses os ingredientes.
O ovo faz toda diferença, ele dá uma talhadinha no caldo e deixa mais encorpado. Não tem desânimo nem gripe que resista a essa canja. Toda minha família e alguns amigos podem comprovar.
É assim: numa panela, coloco 1 cebola cortada em pedaços grandes (gosto de encontrar os pedaços depois de cozida), 3 ou 4 dentes de alho inteiros, peito de frango cortado em cubos médios (uso em geral 1 bandeja de frango Korin que dá 600 gramas) e cubro com água fria até cobrir o frango e ainda sobrar uns 2, 3 dedos pra cima. Pode calcular o dobro do volume de frango para a água. Ligo o fogo, coloco sal, mexo bem e se eu tiver uma folha de louro, coloco também. Espero ferver e depois abaixo o fogo e deixo cozinhar com a panela semi aberta. Quando o frango já estiver branquinho e cozido por dentro, é hora de colocar o arroz. Coloco 1/2 xícara de arroz (se você colocar muito não sobra caldo. Confesso que às vezes eu até gosto), mexo e deixo cozinhar até o arroz ficar cozido e crescer. Se precisar, acerto o sal. Desligo o fogo e aí jogo em fio 1 ovo batido, mexendo sem parar. Ele coagula e se mistura ao caldo. Uma delícia. E pronto. Comer na hora e se tiver um parmesão, nada mal colocar uns nacos do queijo no prato e jogar a canja quente por cima. Ah! e quem gostar, pimenta do reino.
Fiz essa receita nos stories do meu Instagram uma vez e deixei nos destaques. Pra ver o passo a passo da canja, clique aqui.
Pra gente lembrar do Sul como ele vai voltar a ser.
Eu muito me orgulho de ter roteirizado a série Prato Feito, que exibiu no ano passado na TV Globo 4 episódios pra mostrar o jeito de comer do brasileiro de norte a sul do país. Comandando pela maravilhosa Rita Lobo, as viagens ganharam tempero, cheiros e sabores, cada uma a sua maneira. O que ficou muito claro é que a gente come do mesmo jeito, o que muda é o sotaque. O último episódio se passa no Rio Grande do Sul e se aprofunda mais no arroz. Afinal o Estado produz 70% do que grão que a gente come.
Eu te convido para ver ou para rever essa série que está no Globoplay. Os outros episódios são no Pará, na Bahia e em Minas Gerais. Todos deliciosos. Clique aqui para assistir.
chorei lendo as receitas e as memórias afetivas, chorei pensando no carreteiro, na galinhada, no sopão de costela e legumes e no aipim com galinha caipira da mãe. chorei lembrando de como a comida une a gente, como os rituais de comida são fortes na minha terra. enfim, chorei.
obrigada e bem-vinda de volta. estava ansiosa por esse momento <3
Yay... que bom que você voltou!!!